Prólogo de um projecto sem nome


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Hoje, enquanto esperava pela Jéssica para irmos beber café, fui escrevendo/escravinhando uma série de ideias num ficheiro de Bloco de Notas, e quando dei por mim, tinha uma espécie de conto mentalmente planeado. Gostava de levar esta ideia para a frente, e verei se a consigo terminar (ao contrário dos meus antigos planos mentais: acabo sempre por encravar no terceiro ou quarto capítulo e depois esqueço-me do que tinha pensado). Se achar que está a ficar capaz, vou postando aqui os capítulos à medida que os for escrevendo. Serão textos um pouco longos, embora eu os vá tentando postar por partes, com as devidas etiquetas para se poder ler tudo por ordem e como deve ser.

O principal motivo que me leva a postar pelo menos este prólogo que escrevi foi o que senti quando acabei de escrever. Há imenso tempo que não me sentia assim, isto é, com aquele sentimento de que o que acabei de escrever satisfaz-me totalmente. A última vez que senti algo minimamente semelhante a isto foi quando escrevi a biografia da Xana para o meu primeiro Assignment de Inglês B2.2. Modéstia à parte, arranquei um 18, o que é algo assim divino naquela faculdade. E nem sequer me sentia totalmente satisfeito com o texto, achei que podia ter melhorado algumas partes. E desta vez, não me arrependo de nada do que escrevi. É raro. E é por isso que partilho isto convosco.

Agradecia também, se quiserem, que deixassem as vossas críticas e opiniões, inclusive relacionadas com o meu estilo de escrita. Procurei escrever de uma maneira em que raramente escrevo, pois costumo ser muito menos descritivo e detalhado, mas desta vez esmerei-me e gostei do estilo que criei para mim mesmo. Obrigado.

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Prólogo

Sejamos honestos: ninguém consegue prever como será a sua morte. Correcção: ninguém consegue prever o que quer que seja. Um palpite é uma coisa diferente; um palpite é uma espécie de tentativa de adivinhação do resultado de um evento futuro, e por norma, esse evento é algo que não nos influencia nem nos afecta profundamente. Quando o evento nos influencia ou nos afecta profundamente, não dizemos “palpita-me que…”, mas sim “receio que…” ou “não gostava nada que…”. Adivinhar o futuro é algo difícil. É uma habilidade imprecisa: podemos adivinhar que vai chover amanhã, mas tendo em conta alguns factores meteorológicos, qualquer um sabe dizer que vai chover a potes no dia 3; quanto a adivinhar que vamos ver aquela pessoa em quem nunca pensamos na loja do chinês com verniz vermelho nas unhas e um piaçaba rosa-choque nos braços, ofereço uma Oreo a quem consiga. É difícil prever o imprevisível, e foi por isso que José Gomes foi atropelado.

Numa passadeira perfeitamente sinalizada, faltando apenas um outdoor de néon que incluísse uma seta em chamas a apontar para a zebra, José Gomes não se deu ao trabalho de olhar para ambos os lados. Tendo em conta que uma extensa e ruidosa fila de carros aguardava a mudança de luz à sua esquerda, o agora-defunto não achou necessário prestar atenção ao horizonte metálico construído por telhados envernizados e antenas de rádio. Caso o tivesse feito, poderia eventualmente ter reparado num BMW que se aproximava do final da bicha a uma velocidade que teria feito as esposas das nove famílias envolvidas no acidente gritarem “Oh, Manel, já estou enjoada!”. O condutor do BMW, saído há quinze minutos de um restaurante em cujos lavabos masculinos se encontravam agora vestígios de um pó branco no tampo da sanita e uma palhinha ainda com o gosto de uma caipirinha junto do piaçaba, não se deu conta da proximidade da matrícula à sua frente, tomando-a pelo sorriso de um elefante cor-de-rosa. Sentindo-se tentado a subir do estatuto de drogado para o de caçador, acelerou e afocinhou a dianteira do carro na traseira de uma carrinha de sete lugares onde seguia uma família de 6, cujo chefe e condutor mal teve tempo de dizer “Mas que car…”.

O choque em cadeia de uns carros com os outros foi algo digno de um coreógrafo de renome, se bem que com algumas falhas naquela dança intrínseca: alguns carros, ao ouvirem o estrondo do metal a bater no metal, bateram com o pé no acelerador, na tentativa de salvar os seus jovens cachopos, os seus animais de estimação e, em alguns casos, as histéricas donas de casa. Foi então graças ao pânico do ser humano que, num acidente no qual poderiam estar envolvidas apenas seis ou sete viaturas, envolveram-se quarenta e duas. Quando o condutor do Seat que liderava a fila na faixa da direita entrou em pânico, assim entrou a cabeça de José Gomes no pára-brisas do respectivo carro. O condutor não travou: quem o faria? Já não bastava o susto de ver um carro a capotar pelo espelho retrovisor, ainda por cima alguém resolve mergulhar carro adentro sem abrir a porta. Com um homem inconsciente ao colo e cujo nariz sangrento insistia em esfregar-se na sua cara, o condutor do Seat pensou em tudo, vomitar, gritar de pânico, afastar o Gomes da sua cara e ligar para o namorado para pedir socorro. De facto, pensou em tudo, menos em travar. E novamente, o pânico humano piorou uma situação deplorável e imprevisível, pelo que o Seat resolveu parar numa loja chinesa, entrando pela janela como uma diva que afasta as cortinas e diz “Cheguei!”

A paragem abrupta do Seat lançou o corpo de José Gomes novamente para fora do carro tal como tinha entrado, ou seja, de cabeça. O condutor ficou inconsciente, o dono da loja esmagado algures debaixo do motor, o cliente de 8 anos que comia Oreos gritou “Fixe!” com a boca cheia, e quando o corpo de José Gomes finalmente aterrou contra uma estante cheia de loiça ao desbarato, tornou-se cadáver, e uma senhora que, vinda do piso superior, desceu as escadas a correr devido ao barulho, deixou cair o piaçaba rosa-choque, levou umas mãos de unhas envernizadas a escalarte à cara, e gritou. Há três meses que não via o Zézinho, como sempre lhe chamava, e eis que ele aparece assim de repente à sua frente, ficando imóvel a olhar para ela, com um fio de sangue que lhe desce do nariz, contorna a sua boca e pinga do queixo para uma tigela branca, que aterrara miraculosamente inteira no seu colo.

Toda esta situação seria difícil de prever, até para as mentes mais brilhantes. Mesmo que se pudesse adivinhar o esquema geral (o tal acidente em cadeia que lança um carro por uma montra adentro), os pormenores seriam difíceis de adivinhar. O miúdo das Oreos não pensaria ver o braço do dono da loja torcido, mas viu-o. O condutor do Seat não se imaginaria a vomitar em agonia, mas vomitou. O condutor do BMW não se via a matar uma família de seis, dos quais quatro eram crianças, incluindo um recém-nascido, mas matou.

E a filha de José Gomes não se imaginaria na berma da estrada a assistir à morte do seu pai. Mas viu, gritou, colocou-se de joelhos, chorou, esperneou, vomitou em agonia… e quanto ao matar, não o fez. E muito menos palpitou. Quanto à morte do culpado, ficou-se pela promessa e pela previsão do seu cumprimento.

João Efigénia

3 Response to "Prólogo de um projecto sem nome"

  1. Anónimo

    Geezzzz... Fucking Awesome. Continua porque a historia e brutall

    F A N T Á S T I C O!!!
    Vê lá se escreves um livrito que a malta gosta do que escreves. Parece que me embalas com as tuas palavras.

    ahah, se lançares um livro QUERO UMA CÓPIA AUTOGRAFADA =P

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