A Sociedade Hipócrita


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Era uma vez um bebé acabado de nascer. Como todos os outros, ainda não tinha desenvolvido uma consciência que o ajudasse a distinguir o bom do mau. E como todos os outros, enquanto cresceu, desenvolveu essa consciência à volta dos seus padrões de vida: brincar em casa com brinquedos coloridos era bom; brincar na rua com os meninos pobres e partilhar os seus brinquedos era mau. Alimentar o seu cão de estimação era bom; partilhar um pacote de batatas fritas com os seus amigos pobres era mau. Jogar fora as roupas que não lhe serviam era bom; dá-las aos seus amigos pobres era mau.
Foi assim que o bebé cresceu, tornando-se num rapaz cuja educação era, para além de impecável em termos de conhecimento, baseada nas antigas crenças de que a raça caucasiana era superior a todas as outras. Certa vez, bateu num cigano que o tinha abraçado no jardim e que lhe tinha dito que brincavam quando eram mais novos. Ele nunca teria brincado com um rapaz daqueles, sujo e pobre, e se tivesse, tinha vergonha de tal.
Ele cresceu, e um dia, com 16 anos de idade, apaixonou-se. Não por uma bela rapariga de longos cabelos loiros e olhos azuis como o céu, como ele gostava. Mas por um rapaz da mesma escola que ele, mulato, não tão rico como ele mas não tão pobre como os ciganos com quem ele brincava quando era mais novo. O rapaz não deu importância, pois foi nessa altura que percebeu que toda a sua infância até esse momento tinha sido uma mentira criada à volta de velhas tradições racistas, cujo objectivo, tinha ele percebido nesse momento, era fazer sofrer as minorias, por mais maravilhosas e perfeitas que fossem.
Nessa noite, enquanto a sua família jantava a ver as notícias na televisão, passou um segmento acerca do crescente índice de casos de homossexualidade no mundo. O pai do rapaz disse que aquilo era errado e que ia contra os ensinamentos de Deus, e o rapaz ignorou-o. Ele namorava a pessoa que amava, e Deus não teria de certeza nada contra isso.
Enquanto o tempo passou, o rapaz namorou em segredo com o mulato. Diziam que no futuro iriam adoptar uma criança, caso fosse possível, claro. E os amigos e conhecidos estranhavam que um rapaz que fora tão racista durante a sua vida se desse tão bem com um mulato.
No dia do seu aniversário, o rapaz convidou o namorado para passar a tarde em casa dele, vendo filmes ou jogando videojogos, ou simplesmente estando um com o outro. E nessa mesma tarde, no preciso momento em que se beijaram, todos os amigos do rapaz e a sua família entraram pelo quarto adentro, com um bolo de aniversário, prendas, e a gritarem "Surpresa!". A surpresa foi deles.
Um por um, voltaram-lhe as costas. No final, ficaram apenas o pai e a mãe. Esta última, de lágrimas nos olhos, apróximou-se do filho com uma fúria tal que parecia prestes a rebentar, e pregou-lhe uma bofetada na cara. O pai apenas olhou para as paredes e disse-lhe para fazer as malas e sair de casa, que ele não era seu filho, e que Deus nunca iria permitir que tal coisa voltasse a suceder no seio da sua família. O rapaz assim o fez, e ficou a viver em casa do namorado, trabalhando num part-time para ajudar nas contas da casa.
No entanto, os dias na escola nunca mais voltaram a ser os mesmos: a partir do dia do seu aniversário, nunca mais nenhum dos seus amigos lhe dirigiu a palavra. Alguns tentaram apoiá-lo, mas foram também postos de parte pelos outros. "O paneleiro que namora o preto", diziam eles.
Um dia, quando ele e o namorado voltavam para casa, foram perseguidos por um grupo de rapazes da escola, armados com paus. Ele conseguiu fugir, mas o namorado ficou para trás. Foi espancado até quase à morte, e quando o rapaz voltou para trás, em lágrimas, pedindo ajuda a quem passasse, o seu namorado apenas lhe disse para lhe prometer que ia ter cuidado. O rapaz prometeu, deu-lhe a mão, e viu-o a expirar pela última vez.
Agora sozinho, a vida tornara-se ainda mais difícil. Todos os dias era gozado, todos os dias tinha que fugir até casa, todos os dias tinha uma nódoa negra, um corte ou uma ferida para tratar. Tratavam-no como a um cão rafeiro, abandonado, dando-lhe pontapés quando passava. Até que um dia, sem aviso prévio e em plena sala de aula, pegou num X-acto e enfiou toda a lâmina no pescoço.
A polícia veio buscar o corpo. Os colegas de turma necessitaram de apoio psicológico. A professora demitiu-se. A funcionária limpou o sangue do chão com uma esfregona, enquanto chorava e se impedia de vomitar. Desde aquele dia em diante, aquela escola nunca mais recebeu nenhum aluno de cor. Culparam o pobre mulato por ter desviado um rapaz com um futuro que parecia brilhante.

A sociedade mata-nos com a sua hipocrisia. Somos levados a pensar que uma coisa é certa e outra é errada quando na verdade, tudo depende do nosso ponto de vista. Fumar mata e cada vez mais o tabaco é reprimido na sociedade. Mas as carnes vermelhas aumentam as probabilidades de um ser humano ter doenças cardiovasculares e ninguém faz nada quanto a isso. Porque todos gostam de comer carne. Todos gostam de apontar o dedo. Todos gostam de se sentir superiores. Todos gostam de matar. Mas ninguém assume a culpa.
Até que um dia, todos nos apontam o dedo a nós, todos querem ser superiores a nós, todos nos querem matar. E ninguém quer ser o culpado da nossa morte.

E tudo porque nós, de um dia para o outro, tornar-nos-emos diferentes. E aí veremos no espelho a nossa essência e pediremos perdão àqueles que no passado magoámos. Quanto a mim, esse dia chegou há muito. Mas a quem me odeia, espero que esse dia chegue em breve.



[Nota: o rapaz do texto não sou mesmo eu, tive que desenvolver um bom exemplo]
[Nota 2: Sim, já escrevi coisas melhores]

4 Response to "A Sociedade Hipócrita"

  1. Anónimo

    Casos como esse na tua história irritam-me profundamente (._.) A maior parte das pessoas não têm noção do mal que estão a fazer quando mandam bocas e stuff like that... Tanto que se podem tornar assassinos sem o saberem... já pa não falar da agressão. (-_-); Well, pra resumir todo o bla bla bla que ia pa escrever: concordo com que o que escreveste.

    E aproveito já pa dizer que adoro ler o teu blog (^-^) Desde assuntos sérios a posts sobre baratas. XDD

    Esses assuntos de descriminação e "apontanços de dedos" irritam-me muito... quer dizer... cada um é como é, se todos fossemos iguais este mundo seria mais desinteressante do que já é. Concordo contigo quanto ao certo e ao errado, temos que nos guiar pelo nosso ponto de vista, eu acho que desde que as pessoas não estejam a prejudicar ninguém, acho que não estão a fazer nada de errado.
    Gostei muito do teu post.
    Desculpa (seriously), devia-me mesmo abster de fazer comentários.

    Anónimo

    ta maravilhoso,perfeito,lindo

    kuase chorei

    Anónimo

    Parei em "batera num cigano".

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